Por Caetano Veloso
O GLOBO
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Faz uns dias, participei da gravação de um DVD de Seu Jorge na Quinta
da Boa Vista, em frente ao Palácio Imperial. O lugar é lindo, e o
espetáculo foi exuberante. Seu Jorge é um talento gigante, e seus
convidados – Zeca Pagodinho, Racionais MCs, Alexandre Pires, Sandra de
Sá, Trio Preto – formavam um grupo forte e representativo para celebrar o
dia de Zumbi dos Palmares.
Cantei “São Gonça”, cheio de medo e
reverência. É que essa é minha canção favorita de um disco pelo qual me
apaixonei logo de seu lançamento, mas que não teve, na altura, a
repercussão merecida. Foi o “Moro no Brasil” do Farofa Carioca. Hoje,
“São Gonça” é um hino, e Seu Jorge é uma estrela. Mas o que soava como
uma ressurreição da Banda Black Rio atualizada pela aproximação ao
hip-hop não pegou de jeito os formadores de opinião profissionais ou
amadores. Que fique claro que esse é um disco sobre o qual se deve
pensar.
Que Seu Jorge tenha convidado os Racionais para adensar o caldo do
festejo é significativo. Chorei ao ouvir Sandra de Sá conclamando a
multidão a declarar que todo o povo brasileiro é sarará-crioulo, de cara
para o palácio onde Dom Pedro II viveu. Mas a passagem dos Racionais
pelo palco foi o momento mais intenso da noite.
“Moro no Brasil” é um disco em que a ponte que uniu as favelas ao
Beco das Garrafas aparece em seu maior esplendor. Essa ponte poderia ter
– e frequentemente tem, com justiça – um único nome: Jorge Ben. Claro
que todo o samba-jazz da Copacabana dos primeiros anos 1960 é
automaticamente homenageado quando coisas como a Black Rio e o Farofa
surgem. Mas não é por acaso que o nosso Benjor (ou será Ben Jor?) é o
favorito notório tanto de Seu Jorge quanto dos Racionais, assim como do
Mundo Livre S.A. de Fred Zero Quatro – para dizer o mínimo (não
esquecendo que o mesmo Ben foi e é o eterno favorito dos tropicalistas).
Pois bem, o Farofa, em certa medida, ofuscou-se por, pertencendo a uma
tradição tão arraigada na cidade do Rio de Janeiro, não poder
desempenhar o papel radical que a adesão ao hip-hop puro, encabeçada
pelo genial grupo paulistano de Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay
desempenhou. Daí que ver este grupo ao lado de Seu Jorge, numa noite em
que eu próprio fui convidado a cantar “São Gonça” (a mais bonita e a
mais jorgebeniana das canções do “Moro no Brasil”), foi um acontecimento
que bateu fundo.
Não faz muito tempo, vi Seu Jorge junto a Mano Brown e Ice Blue, no
projeto paralelo Boogie Naipe, liderado pelo Brown. Vi no Rio, numa casa
do centro da Gamboa, e, depois, vi em São Paulo, num dos teatros do
Sesc. Mano Brown prossegue numa espécie de pesquisa pessoal sobre a
música negra que rolava quando o hip-hop era um embrião. E Seu Jorge
transita – entre outras variantes – de Racionais a William Magalhães
(filho de Oberdan, o criador da Banda Black Rio, um músico que era, ele
mesmo, um espécime dessa fusão natural de morro e samba-jazz, sendo
afilhado de Mano Décio da Viola e aluno de Paulo Moura). Parece coisa
miúda, conversa de hiperespecialista, mas o fato é que essa aproximação
entre um filho direto da Black Rio com os pais do rap paulistano é
acontecimento de grande monta. Representa, pelo menos aos meus olhos, um
amadurecimento importante numa área vital para a música popular
brasileira. E já me aparece em estágio muito mais desenvolvido do que
esperariam minhas mais otimistas expectativas.
Cantei (timidamente) com Seu Jorge e desci para assistir ao show ao
lado de meu filho mais novo. Ele tem 14 anos e estava ali precipuamente
para ver os Racionais (embora seja fã de pagode e de funk carioca – como
todo jogador de futebol – e ame Zeca Pagodinho, ele tem nos Racionais a
instância mais alta da criação de música entre nós). Meu filho
imediatamente mais velho do que esse, o que tem 19 anos, também idolatra
o grupo paulista desde que tinha a idade que o menor tem hoje. Cheio de
coisas para fazer, ele quase não pôde chegar para ver o show. Mas
surgiu perto de nós, no gargarejo, exatamente quando os Racionais
começavam a entrar em cena. Quem não está familiarizado com essa cultura
não tem ideia do clima de respeito que a presença de Mano Brown
inspira. Ele tem dos moradores das periferias e dos adolescentes de
todas as classes sociais o respeito profundo que se devota aos
verdadeiros poetas. Ele surge também como um herói. Mas é mesmo como
poeta que ele é percebido. Os meninos e a multidão não precisam dizer
isso, mas quem já viu a reverência que os amantes de poesia exibem
diante de poetas verdadeiros sabe reconhecer o clima quando ele pinta.
Há intensa poesia em “São Gonça” ou em Sandra convidando a massa a
declarar-se toda sarará-crioula em frente ao palácio onde a Princesa
Isabel cresceu. Mas a poesia dura, anticordial (no sentido Sérgio
Buarque do termo), alimentada na experiência extrema dos artistas negros
americanos que os Racionais apresentam tem a capacidade de se destacar
para impor seu próprio teor poético. Quando eles surgiram, não havia
risco de confusão com as explosões autocelebratórias da
sentimentalização das relações desiguais. Eles demarcaram território. O
lado Zumbi sem contaminação do lado Zabé. Que o poderoso poema que vem
sendo escrito pelo lado Zabé esteja em diálogo profundo com esse
quilombo me parece auspicioso. Desta vez, foi KL Jay quem mais me
marcou, com sua precisão. Tendo recebido tal educação, fui ver o
Melanina Carioca na Melt. Leblon-Vidigal.
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