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OPINIÃO: "Não existe lugar para todos no capitalismo, se o hip hop não alcança todos, passa a ser uma cultura falhou"

Não há capitalismo sem racismo, sem machismo, sem homofobia, sem exclusão de classes


POR ALISSON TIAGO
HIP HOP SEM MAQUIAGEM


O hip hop sempre foi apontado como contracultura crítica ao sistema capitalista. Durante muito tempo, para uma grande parte dos seus adeptos, ser do hip hop era não se adequar ao estilo de vida socialmente aceito. Por ser uma cultura que se desenvolveu em setores historicamente aniquilados por relações de poder estabelecidos através da violência e ideologias racistas e conservadoras, o hip hop passou a ser referência por representar a parcela da população que é menos favorecida, não só economicamente, mas em todos os aspectos sociais. Se a sua história não abarcasse o acolhimento aos povos e tradições que foram intencionalmente devastados pelo sistema econômico vigente, o hip hop não teria o tamanho que tem hoje.

Em qualquer sociedade, quando um ambiente favorável à destruição massiva de um povo e a sua segregação é criado, também se estabelece uma antítese que aflora nos excluídos um sentimento de transformação, o hip hop, movimento estabelecido no final dos anos 1970, é um dos exemplos. Outras referências são as revoltas dos Malês, na Bahia no século 19, ou a liderada por Toussaint Louverture no Haiti em 1791; os movimentos sociais nos EUA na década de 60 protagonizados por Angela Davis, Rosa Parks, Malcolm X e Luther King; a luta de Mandela contra o Apartheid na África do Sul.

ULTRAPASSANDO O SÉCULO 20

O rap brasileiro, iniciado nos anos 1980, ganha caráter explicitamente político na década seguinte, assumindo um papel de contrariedade ao neoliberalismo que vigora naquele período. O historiador Roberto Camargo, no livro “Rap & Política”, aponta o hip hop como agente opositor da doutrina neoliberal que se firma como reguladora das tensões sociais, área antes dominada pela política. O individualismo, a competição e a livre concorrência tomam as rédeas para determinar quem são os vencedores.

No final do século 20, uma enxurrada de clipes de ostentação invadiram as telas. Era a famigerada música “black”, onde rappers americanos ostentavam carrões, mulheres, correntes e dentes de ouro. A famosa moda bling-bling atingiu em cheio a mídia. Como modo de escapar ao estereótipo do negro escravizado, que por anos não obteve ascensão material e viveu sob o poder senhorial, agora os “50cents” tinham muito mais do que 50 centavos. Os novos sujeitos da história tinham aquilo que lhes foi negado por séculos. Este fato influenciou rappers brasileiros, que sempre buscaram inspiração em grupos dos EUA.

CONTRADIÇÃO

Numa contradição criada em meio aos conflitos de interesses, também podemos afirmar que o hip hop é uma produção do capitalismo e que passou a ser uma espécie de nódoa infiltrada no seu genitor. Mas, diferente do rap americano, onde as pretensões mercantis estão estabelecidas na cultura hip hop, e não há problema em expor as conquistas de uma carreira “vitoriosa”, em terras tupiniquins armou-se uma esquadra de determinismos para decidir quem eram os vendidos e quem eram os verdadeiros. Nessa atmosfera de disputa, começaram a pipocar parcerias entre rappers e a grande mídia.

Participação em programas dominicais, reality shows, parcerias musicais duvidosas, patrocínios com grandes marcas, anúncios protagonizados por rappers criaram uma simbiose lucrativa para ambos. Logicamente que uma parte ficou com mais vantagem que a outra. Foi aí que o rap brasileiro passou a abordar temáticas voltadas ao mercado, ao consumo, a meritocracia, ao ter e não ao ser. Sancionando de vez uma transição para discursos mais brandos contra o sistema e voltando sua lente para o indivíduo, não mais focando questões coletivas.


RACISMO E CAPITALISMO

 É importante lembrar: quando a indústria da moda destina o protagonismo de sua propaganda a um representante de minoria, não o faz por altruísmo ou por questões de reparação. Mas sim por entender que o alvo daquele anúncio é um potencial comprador da sua grife. Entende-se que a ascensão ao poder de compra se estendeu aos negros, às mulheres, aos gays e aos pobres, e isso significa que o numerário empresarial irá aumentar. No capitalismo, o acesso aos bens materiais é resguardado a um número finito de pessoas, já que a exclusividade é parte inerente do status adquirido com a compra. O detentor do material comprado é superior porque ele o possui, e o outro não. Caso contrário, o produto em destaque não seria objeto de desejo de muitos.

É só observar em reportagem de 2014, onde uma grife que foi posicionada para consumo da elite, mas é usada por pessoas de baixa renda, incomoda os antigos compradores por não ser mais uma marca “exclusiva” deles. Muitos pensadores negros, entre eles Malcolm X e Angela Davis, afirmavam que não existe racismo sem capitalismo e que os dois são opressões que devem ser combatidas juntamente. Uma frase atribuída a Steve Biko diz que ”o racismo e o capitalismo são faces da mesma moeda”. No sistema econômico do capital, a força de trabalho é entendida como mercadoria, e toda mercadoria tem seu valor de compra e venda.

Ao estabelecer a inferioridade racial entre as pessoas, o capitalismo impõe a diminuição de acesso dos negros aos privilégios sociais e isso causa uma escalada de subserviência que é refletida em inúmeros aspectos. No capitalismo existe uma padronização do privilégio que deve ser usufruído por poucos, e esse padrão é o homem branco bem sucedido. Com isso, tudo que não é espelhado nesse modelo é inferiorizado, seu valor de mercado diminui.

Portanto, não há capitalismo sem racismo, sem machismo, sem homofobia, sem exclusão de classes. Não pode haver capitalismo onde as diferenças são toleradas. O racismo não se reveste apenas de palavras preconceituosas como as de William Waack. Ele é materializado diariamente nos encarceramentos em massa, nas produções industriais desumanas, nas tarefas humilhantes, nos empregos degradantes, nas estruturas de privilégios que nos excluem, e no extermínio promovido pelo Estado da juventude pobre, preta e periférica.

O HIP HOP PODE PROMOVER IGUALDADE E SER CAPITALISTA AO MESMO TEMPO?


É preciso ter clareza das prioridades que queremos seguir. Um hip hop preocupado com a eliminação do seu adversário através dos quilates do seu relógio, ou da marca do seu whisky preferido, dificilmente vai se preocupar com as mazelas coletivas do seu povo. Quando a individualidade é colocada a frente de questões que envolvem seus pares, o combate a ser feito não envolve todos nós.

Quando um rapper propagandeia uma marca de tênis cara, não significa em hipótese alguma que todos os seus pares tenham conseguido consumir o calçado. O artista apenas demonstra a máxima de Florestan Fernandes, de que “a exceção confirma a regra”. O fã que vê seu ídolo portar artigos que na maioria dos casos não integra o seu meio social, enxerga naquilo um meio de ascensão social, de diferenciação, e não simplesmente um produto. A verdade é que, no capitalismo, não existe lugar para todos. Um hip hop que não alcança todos é um hip hop que falhou.



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