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Kamau e as linhas do Avulso#03 - "Próximo"


O #ReferênciAna, assim como explica o nome, é uma seção do NP, aonde você vai encontrar algumas de minhas percepções e discussões sobre letras de músicas. Nesse caso, é mais uma interpretação e reflexões despertadas em mim, com algumas contribuições do próprio Kamau sobre as linhas de "Próximo".
#ReferênciAna - Próximo

A imagem pode conter: céu, nuvem e atividades ao ar livre
Foto por David Freiberg, arte por Muzzike

É sempre muito engraçado ver os comentários quando o Kamau lança algo, porque toda vez vem o clássico "voltou pesado", como se em algum momento desde o primeiro trabalho na música ele tivesse parado de produzir conteúdo.
A sensação de necessidade de um EP, álbum, é entendível, porém não se justifica, quando ao invés de consumir e refletir sobre o que acabou de ser lançado, as pessoas ficam pensando no Próximo.


O terceiro som da sequência de músicas avulsas que vem sendo trabalhadas nos últimos anos ('Contra', 2016 e 'Tudo é uma questão de...', 2017), se chama 'Próximo' e foi lançado no último dia 28 de setembro. Com produção do beat inicial por Della Beats, e a produção final de Kamau, adicionando o baixo por Júlio Mossil, guitarra por Toca Mamberti, Scratchs e colagens por DJ Nyack e vozes adicionais de Coruja BC1 e Muzzike. (Ficha completa na descrição do vídeo), Próximo conta também com uma espécie de lyric vídeo, gravado e editado por Rodrigo de Andrade e com cartazes feitos por Raynan Sanchez, aka Sanx. Acompanhe a letra aqui, e confira o videoclipe abaixo: 

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"Essa política sem lógica, sem nexo,
Essa política do próprio paradoxo,
Essa política larica mais que tóxico,
Essa política do fight bem no plexo,
Essa política que não respeita sexo,
Essa política perdida em circunflexo,
Essa política mentiras em anexo,
Essa política do choque heterodoxo"

Durante a execução de Próximo, a gente tem uma sensação de já ter ouvido algo sonoramente parecido, e isso se dá pela escolha dos tipos de palavras que iriam construir a música. Em 1995, Athaliba e a Firma fizeram algo nesse sentido, na música Política, a letra é assim como Próximo, cheia de palavras proparoxítonas (inclusive evidenciadas no lyric vídeo). Palavras proparoxítonas são as palavras que acentuamos, ou seja, colocamos mais ênfase sonoramente, na antepenúltima sílaba. Por isso então esse tipo de estrutura faz a gente lembrar de algumas referências sonoras que temos.

"A vida não dá boi, já disseram meus manos do Pentágono". A música começa fazendo referência ao refrão do som É o moio, do grupo Pentágono (2008). 



Seguindo, a linha "Sua rima é espetáculo ou diálogo?", parece ser algo que pode e deve ser direcionado a terceiros, o pertinente questionamento se a pessoa faz música pra impressionar, entreter, ou pra dialogar e estabelecer uma comunicação com quem ouve. Porém, a sequência, "Desde antes do Prólogo, tento ser meu próprio psicólogo, sei que não somo nada se o que escrevo for monólogo", nos leva a pensar também que pode ser algo mais intimista do próprio Kamau, funcionando como reflexão pessoal externalizada pra que as pessoas que se identificam se apropriem daquela autoreflexão. Prólogo (ouça aqui) é o EP do grupo Consequência, formado por Kamau, André Sagat e DJ Ajamu, lançado em 2002. Quando ele diz que antes do Prólogo, entendendo como sendo esse primeiro trabalho, ele já tentava ser o seu próprio psicólogo, traz essa ideia de que a reflexão era mais pessoal do que direcionada a outras pessoas. E aí o verso seguinte responde a reflexão, dizendo que se ele ficar no monólogo, fazendo um discurso pra si próprio, sem externar isso, não vai somar em nada pra quem ouve.

Capa do Avulso #02 - É tudo uma questão de...

Acredito que essa linha "Fugir do monótono, rimador autônomo, Fora do quantize, e coração como metrônomo" foi uma das interpretações mais pessoais desse texto, porque obviamente, não entendo o mínimo sobre essas paradas de manipulação e produção musical, então tive que procurar definições genéricas dos termos pra entender. Monótono por definição, é algo que indica uma ausência de variedade, diversidade, algo que tem uma uniformidade, e dialogando com isso, a capa do Avulso #02 - 'Tudo uma questão de...', tem uma placa de Proibido Estacionar. O objetivo da quantização é fornecer as notas criadas um tempo preciso de batida, não sei se correto dizer mas é uma espécie de  ajuste, de alinhamento das notas dentro de um tempo. Já o metrônomo, é o que vai marcar o BPM, que vai dar de uma forma geral, precisão rítmica pra música. Juntando tudo isso, com a questão de ser um rimador autônomo, que tem autonomia pra determinar o que faz ou não, sem imposições de outrem, entendo que estar fora do quantize e ter o coração como metrônomo, significa essa não limitação pra caber em algo, mas a liberdade de fazer música de uma forma essencial, que o movimente.

O verso "Experimento lírico, sem cunho político (porém), meu senso crítico cumpre seu dever cívico" acredito que principalmente esse ano, tem sido algo visível em todos os grupos sociais, em todos os espaços, por conta do momento político que o país se encontra, com polarizações partidárias (nem tão polarizadas rs), combinada com a  falta de autonomia de pensamento das pessoas. Esse cenário cria essas pressões pra que os e as artistas se posicionem politicamente a todo momento, em tudo que fazem, e as vezes o mesmo só quer fazer sua música, seu experimento lírico, de forma livre, sem essa necessidade de direcionar todo trabalho pra questões políticas de posicionamento sobre algo. Isso é uma parada muito forte no rap feito no Brasil, de forma que algumas pessoas até criaram o infeliz marcador do que é rap ou não é rap de acordo com o conteúdo das letras e tudo mais. E a segunda linha, ao meu ver traz um pouco sobre isso, as vezes o que importa, o dever cívico, está implícito e isso que importa. Cuide do seu rabo já, já diria meu RPW de lei. (Esse não é uma reflexão que não acha importante alguns posicionamentos em determinados momentos, necessários, mas é algo que vai na direção dos guardinhas, que ficam ali a todo momento querendo limitar o que as e os artistas tem que cantar).  

"Menino, máximo respeito é o mínimo, se o rap é religião, separa o do dízimo" a princípio, a minha interpretação foi num sentido mais ligado a questão do dízimo, mas de uma forma pessoal, então seria a devolução da prosperidade do artista pro rap, numa forma de investimento na própria melhora da qualidade das músicas apresentadas. Porém perguntando pro próprio Kamau e re-significando as impressões, é algo mais ligado ao contexto todo. Se as pessoas bradam que o rap é religião, que foram salvas pelo rap, que devem muito ao rap, porque não o consumir?Porque não essa retribuição pro "templo" que a gente frequenta? Pra estruturar, pra manter a única preocupação sendo "rezar", no caso, fazer música. As vezes as pessoas reclamam de pagar a entrada num rolê de amigo, não compram álbuns, não compram produtos, não exercem a sua "fé" como é esperado, e depois acaba reclamando que tem religiosos distorcendo a religião. Mas só é possível distorcer a religião com estrutura pra isso, então só é possível que se criem personagens "em laboratório" pra interpretar um espetáculo que não nos agrada, porque o público desses personagens tem gerado 'condi$$ões' pra isso. (Aqui não falo do consumo sendo só através de diretamente grana, mas também por muitas vezes as pessoas gastam energia e tempo pra falar mal do que não gostam, ao invés de divulgar e exaltar coisas que gostam).

"Muito mais que rótulo, gênero, título, SOU,
Glóbulo, cérebro, tímpano, VOU
Além do estereótipo, ótimo, 
no mínimo, máximo,
PRÓXIMO"

A primeira linha do refrão pra mim são as coisas que vem de fora pra dentro, então, rótulos, gêneros e títulos são coisas colocadas pra gente por terceiros, por isso que ele diz ser muito mais que isso. Já glóbulo, cérebro e tímpano, são nossos sentidos, nosso corpo em movimento percebendo o mundo. A biologia que nos ajuda a sentir o mundo e processar nossas percepções sobre ele, por isso é além do estereótipo colocado, é o que a gente consegue absorver do mundo. E aí, de forma bem extremamente pessoal também, penso que finalizar com "PRÓXIMO", indica que a gente só pode pensar no próximo, no que tem por vir, depois de perceber e absorver o que estamos vivenciando, sentindo, assistindo, ouvindo, agora. 

"E ainda faço por amor, talvez eu seja um dos últimos românticoscreio que ele não está literalmente falando sobre ser um dos últimos, mas nessa diminuição de pessoas fazendo música, além de POR, mas principalmente COM amor, e com todo o cuidado e responsabilidade que amar exige. Penso isso, por conta do possível diálogo que essa declaração de fazer por amor, faz com os versos antes do refrão, "Mas pra quem entra de olho na cédulas, saiba que nem todo grão de areia vira pérola, requisito básico, expandir o círculo, e tirar seu pensamento do cubículo". 


"Meu cântico, é por quem cruzou à força o atlântico, botando pânico em quem prefere me ver pacífico, típico, de quem teme meu pessoal prolífico" Trazendo a questão da ancestralidade, e dos desenrolares atuais do que aconteceu no passado, cantar por quem cruzou à força o Atlântico, é cantar por todos nossos antepassados que foram escravizados, violentados e cerceados do direito básico a vida. Quando Kamau fala sobre botar pânico em quem prefere ver ele pacífico, creio que seja também conversando com o verso anterior, já que cantar pelos antepassados envolve principalmente denunciar o processo histórico e os impactos atuais desse processo. 
A questão do meu pessoal prolífico (por definição é que gera prole, mas é também utilizado pra dar nome a quem cria muitas coisas, muitas obras), logo, EU entendi como sendo o povo negro criador de muitas coisas que foram sendo apropriadas ao longo do tempo, numa tentativa de apagar a história negra. As pessoas entram em pânico, porque  pensar sobre isso, envolve também responder sobre uma série de privilégios atuais conseguidos com a exploração desse grupo de pessoas  negras. Emicida, em Inácio da Catingueira (2018), tem uma rima que diz "Eles vão fazer de tudo para que você reaja, se você responder a um palavrão com outro palavrão, eles só vão ouvir o seu, ouse responder a um soco com outro, eles vão dizer: Ó lá, o neguinho perdeu a cabeça!"

Continuando nesse sentido de cobrança, de conhecimento de lugar na história, "Para cobrar os séculos e séculos de dívidas, nossa cota é revidar, melanina vívida, lágrimas, sangue, suor e pólvora líquida", séculos e séculos de vida se referem ao período escravocrata (declaradamente racista, já que hoje existe uma tentativa de velar esse racismo), e aí o pedido de revide vem quando ele caracteriza o que negros e negras escravizados passam nessa época, então, lágrimas, sangue, suor e as palavras cuspidas, que tem tanto potencial de destruição quanto a pólvora.

"Manda esse verso para análise balística, basta de estatística, sejamos símbolos, não mártires, ícones vivos, não ídolos frívolos" é importante e essencial que pensemos na questão de nos manter vivos, fisicamente. Ser um mártir, envolve ter um legado, uma causa defendida, mas estar morto. A estatística que tem que acabar, envolve talvez a questão dos números estatísticos de violência associados as pessoas negras em maioria, mas as pessoas como um todo. Quando ele canta que sejamos ícones vivos, e não ídolos frívolos, creio nesse apelo, pra que sejamos notórios enquanto ideias, seguros de posicionamentos, ideias e tudo mais, diferente do que a definição de frívolos traz. 




Caminhando pro fim do som, o verso "Flores em vida, menos homenagens póstumas, quantos já se foram na corrida pela fórmula, da imortalidade, da felicidade rápida" é marcado no vídeo pela imagem do DJ Primo com a mensagem "pra sempre". No último dia 8 de setembro, completaram-se 10 anos da perda irreparável do DJ Primo.  Alexandre Muzzillo Lopes era figura ativa no Hip Hop brasileiro, como DJ e produtor de eventos, ele atuou ao lado de vários nomes da música, e é lembrado por todos com muito carinho e admiração. O Kamau sempre menciona ele em diversos espaços, mantém mesmo viva as memória que tem com ele, e sempre emociona o carinho e respeito com que ele faz isso.

Foto por @jozzuphoto
Utilizando-se da última frase do som, como vocês puderam ver, o efeito foi realmente psicotrópico. Eu gosto muito de músicas que além de falar "eita" eu consigo ficar tempos pensando sobre, e refletindo, então, esse é mais um desses sons.

Bom, é isso, muito obrigada pra quem chegou até aqui, lembrando sempre que são minhas reflexões como ouvinte, pode não condizer com a intenção do autor. Deixem suas contribuições nos comentários também.

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