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O rapper e professor de inglês Rodrigo Brito conversou conosco sobre: educação, racismo, pan-africanismo, rap e varias fitas.

O rapper e professor de inglês Rodrigo Brito, conversou conosco sobre: educação, racismo, pan-africanismo e varias fitas.

Finalizando nosso quadro "Opinião Periférica" edição mês da consciência negra, entrevistamos o rapper e professor Rodrigo Brito, vulgo Buga.
Nesta entrevista o Buga fala sobre: Racismo, Pan-africanismo, seu corre no rap, seu corre como educador e varias fitas. 
Leia que a história do mano é incrível e inspiradora, alem de ser uma leitura de grande aprendizado.

Salve Buga, obrigado por aceitar participar da entrevista. Pra começar da hora, quem é o Rodrigo Brito vulgo Buga ?

R: Salve salve meu mano! Muito obrigado pelo convite, sinto-me lisonjeado pois admiro muito seu trabalho e de toda a sua equipe com o Noticiário Periférico. Rodrigo Buga é um MC e professor de língua inglesa residente desde a infância na periferia de Campinas/SP e recentemente Hortolândia/SP. Trocando em miúdos: Sou também um desenhista amador... um músico amador e apaixonado pelas artes. Um guerreiro, um semeador de sonhos. Eu sou o Fruto Resistente mano. Aquele que foi plantado e semeado no chão de barro, na lama, da "área de invasão", no barraco de madeira, com telha Brasilit, em beira de rodovia. Filho da dona Magda (in memorian), faxineira, diarista, guerreira, que me criou sozinha junto com meus irmãos. Cresci sem pai, pois o Antônio Carlos (in memorian) infelizmente foi assassinado quando eu tinha quatro anos.  Eu sou um dos símbolos do descaso e das consequências do racismo na vida do povo preto nessa masmorra chamada Brasil. Criado com o bom exemplo da minha mãe e aprendendo também com o mau exemplo de todas as pessoas e fatos que eu via na favela ao meu redor. Eu sou a exceção da regra, há 34 anos contrariando as estatísticas.


Sendo com você ou não, qual sua primeira lembrança sobre uma situação de racismo ? 

R: Quando eu tinha aproximadamente cinco anos de idade, organizaram uma quadrilha na minha creche. Por eu ser preto (mesmo sem saber na época) as educadoras acharam por bem colocar uma menina preta pra dançar a quadrilha comigo. Me recusei. Fiz cara feia, fiz cena, arrumei problemas até elas decidirem arrumar uma menina branca para eu dançar. Tal fato hoje me soa tão absurdo que eu nem consigo relatá-lo direito. Eu era uma criança, mal me entendia por gente, mas já sabia que a menina branca era a mais desejada. Que a menina preta era desprezada. E que eu como o menino preto também era desprezado e alvo de zombarias. Por nossa situação de empobrecimento, tanto eu quanto a menina preta íamos pra creche com as roupas doadas, com o cabelo sem os devidos cuidados, com a canela cinza... Me debatendo muito com tal fato, em todo meu processo de tornar-me preto e consciente do meu valor, hoje consigo encaixar as peças do quebra cabeça e destrinchar tal fato absurdo. Lembro que na televisão velha, caixotão, preto e branco, todo dia eu via a nave da "princesa" descer e subir. Ela era loira. Branca. Todos diziam que ela era bonita. 
Ela sorria. Ela falava de afeto e amor. Existia um ideal de romance e de belo que me foi forçado goela abaixo. Eu não tinha opção. Minha afetividade foi construída pelos brancos racistas. Lembro dos filmes, das propagandas. Isso já havia me afetado absurdamente -mesmo tendo apenas cinco anos de idade. Hoje lembro com muita dor de tal fato e me pergunto o tamanho do trauma que

aquela menina preta deve ter enfrentado por tamanho absurdo. Se eu, que cometi tal barbaridade sem nem ter noção do que fazia sinto a dor, imagino ela. Hoje desejo muito que nossa ancestralidade a cure e lhe dê uma vida feliz. Felizmente encontrei a cura, a autoestima, e hoje estou casado com a Débora, mulher preta, mais retinta que eu.

Quando você teve seu primeiro contato com rap? E quando decidiu fazer parte dele?

R: O primeiro vinil de rap que peguei na mão foi "Escolha Seu Caminho" dos Racionais MC's. O impacto psicológico que surtiu em mim foi muito forte. Eu estava visitando meus parentes em Belo Horizonte/MG. Meu primo me mostrou e a partir dali meu interesse foi muito grande. Eu mal sabia o que era rap. Mas o visual daqueles pretos na capa frontal, no crime, e na capa traseira sentados em uma mesa lendo diversos livros, já foi uma baita lição sobre caminhos e opções de vida. As rimas então... ali que eu tive meu primeiro contato com o que chamamos de denúncia do racismo, do projeto de poder supremacista branco que visa nos destruir ou minimamente manter dominados.
Porém eu ainda não rimava. Na escola, o Thiago, grade amigo, também preto, começou a conversar comigo sobre rap. Lembrei da experiência que relatei acima, e na época, "Fim de Semana no Parque" e “Um Homem na Estrada” estavam estouradas.  A partir dali, este amigo me mostrou Bone Thugs-N-Harmony, 2Pac e começamos a cantar no recreio, recitando rimas dos Racionais, Sistema Negro, Consciência Humana... os que conseguiam eram os "descolados". Bons tempos. Comecei a pegar emprestadas umas fitas VHS com vídeos de Gangsta Rap, e a partir dali começamos a escrever as primeiras rimas. Minha primeira escola foi o Gangsta Rap. Nesta altura eu já era um grande fã de rap. Quando saiu o disco "Sobrevivendo no Inferno" eu já era fanático no grupo e já tinha algumas letras rascunhadas. Ficava desenhando a cruz da capa do disco no caderno. Isso lá pra 1998... o Thiago tinha uns amigos que montaram um grupo de rap no Bairro. Começamos a frequentar os ensaios, e assim entramos pro extinto grupo Família UDQ, da região do Jd. São Marcos de Campinas/SP. 



Eu particularmente conheci seu trampo na época do TSK. Como um Comediante, um professor e um Moto Boy formaram um grupo de rap? 

R: Minha história com o extinto Tosskera é muito emocionante e marcante. Vou tentar ser sucinto. No ano de 2008 todas as tentativas de alavancar algum trabalho sério com o rap não haviam dado certo por vários motivos - falta de recursos, membros abandonando o barco por
outros projetos de vida, falta de informações, etc. O maior êxito que obtivemos na carreira da Família UDQ foi o contato com o GOG em sua coletânea “Família G.O.G. – Fábrica da Vida” com a faixa “Vida”. Desta coletânea surgiu o sucesso “Fogo no Pavio” do GOG e também formulou-se “A Família”, com Denis Preto Realista, Gato Preto (In Memorian) e Crônica Mendes. Foi muito bom o contato com eles já naquela época. Após o término da Família UDQ, eu montei o grupo “Negros em Harmonia” que infelizmente não foi pra frente, mas eu continuava esboçando rimas no computador, tinha até publicado alguns trabalhos solo amadores e independentes em antigas redes como Myspace, mas nada sério. Meu mano Jords MC estava organizando algumas batalhas de MC
em Campinas - era aquela onda proporcionada pelo “boom” inicial do filme 8 Mile do Eminem, e batalhas como Rinha dos MC's e do Santa Cruz já estavam solidificadas. No evento "Massacre de MC's" eu tive a oportunidade de conhecer o Luiz Paixão (na época vulgo Novato) e o Mototreta
(na época vulgo Leittty MC e depois Underson Leitty). Ambos batalhavam, inclusive entre si. Estávamos assistindo uma batalha e avaliando o desempenho dos MC's. Eu como rimava desde 1998 havia tido pouquíssimo contato com rimas improvisadas - estava impressionado com o desempenho geral dos MC's improvisando. Eu ficava comentando "não é possível, só pode ser decorada" rsrs... Com o tempo fiz amizade com ambos, trocamos Myspace, MSN e a partir disso
num determinado dia Mototreta e Luiz Paixão apareceram em casa me convidando para ingressar no grupo de rap Tosskera, fundado por ambos, e eu prontamente aceitei. Eles já haviam lançado a música "Vida de MC" com produção do CoyoteBeatz e scratches do DJ Piá, e eu pirei. Fiquei

enchendo o saco deles para fazermos uma versão remix com meu verso, e calhou que pro nosso álbum a música ficou com os versos dos três MC's. E assim iniciou-se a saga do Comediante, do Professor e do Motoboy... com eles conheci mais a fundo o Rap Underground e também aprendi a fazer freestyle e batalhar! Cabe acrescentar que nossos maiores êxitos enquanto Tosskera foi o lançamento do disco “É um Comediante, Um Professor e Um Motoboy” em 2013 concomitante com nossa participação no Programa “Manos e Minas”, juntamente com nossos parceiros Daniel Garnet & Peqnoh e também meu parceiro Paulo Microfonia, com o qual tenho um projeto chamado DazCaverna. Após o término do Tosskera/TSK, sigo carreira solo (Rodrigo Buga) e tenho um projeto com o Luiz Paixão denominado Godzillaz.  

Vejo muita gente do rap se interessando em ser educador. O fato de você querer ser professor tem influencia do rap.?

R: Com certeza. Desde o primeiro contato até hoje sinto-me um aluno na sala de aula do Rap Nacional. Meus primeiros professores com certeza foram Mano Brown, MV Bill, Pregador Luo, GOG, WGi, Preto Aplik, Doctor X, Eduardo Facção, Gabriel O Pensador, Krayzie Bone, Nas, Tupac Shakur, Notorious B.I.G, Rakim, Andre 3000, Dina Di, Cris SNJ, Rúbia RPW... esse pessoal mudou minha vida, e como também eram estudantes, me trouxeram muitos outros  professores dos quais aprendi muito também. O rap foi a porta do mundo da consciência pra mim. Pra você ter ideia, eu me tornei professor de inglês por sempre tentar encontrar e traduzir letras dos rappers gringos, em especial do Pac, e ter percebido uma certa habilidade e facilidade nisso. 

Hoje você é professor formado e tal. Mas como era o Rodrigo na escola?

R: Eu era o tipo avoado. Viajadão. Moscava lindamente. Parecia que tava no Fantástico Mundo de Bob. Me sentia o Doug Funnie rsrsrsrs. Sempre curti quadrinhos, heróis... era meio “nerd”. Não dava trabalho pros professores, pelo menos. Tinha boas notas até, em especial em História. Sempre tive facilidade pra escrever e pras artes e dificuldade pra cálculos e raciocínio lógico. Sofria um Bullying/Racismo lascado, mas... quando alguém precisava de desenho, era pro Buga que eles iam pedir rsrsrs


Você usa sua vivencia no rap dentro da sala de aula..? se usa, diga como.

R: Uso bastante. Nas situações de ensino e aprendizagem sempre faço menção aos  meus primeiros professores. Já usei até mesmo freestyle como estratégia de aprendizagem; letras de rap para interpretação de texto, tocar alguns raps, entre outras. Os alunos gostam de ter um "professor rapper". 

Aproveitando que estamos falando do seu lado acadêmico. Sabemos que o ensino público sempre foi precário. Mas como você analisa o atual momento da educação na cidade onde você leciona?
Por exemplo: A Lei 10.639, que diz que tem que ter o estudo sobre a África, isto é aplicado ?


R: Analisando o atual momento - a educação continua não sendo a prioridade dos governos - existe muita politicagem e toma lá, dá cá. Maquiagem de dados, distorções - governantes querem índices melhores com finalidade eleitoreira - não formar cidadãos críticos e autônomos. Estamos às voltas com uma disputa de forças entre ideologias conservadoras, retrógradas e racistas (escola sem partido, bancada evangélica) e ideologias progressistas que às vezes de fato escorregam e também passam da conta (liberdade artística excessiva, agenda LGBTT com pautas também excessivas, etc). A Lei 10.639, quando aplicada, causa um grande impacto na vida das crianças pretas. 
Felizmente participo de uma rede municipal na qual a aplicação da lei acontece. Não por todos os professores, mas os que aplicam geralmente fazem um ótimo trabalho. Apesar das várias ressalvas que tenho em relação a tal lei, cabe mencionar que se ela existisse e fosse aplicada na minha época eu creio que o racismo que sofri seria bem menor, e minha autoestima e confiança seriam mais sólidas. A história que eu conhecia sobre pretos, pelo que escola me ensinou, era de derrota, sofrimento, degradação, correntes, torturas, troncos, pesos nas costas... eu era o Saci. O neguinho do pastoreio. A cachota. Ninguém quer ser a derrota, o ruim, o feio. Eu queria ser bonito. Eu queria então, ser branco. A escola que me ensinou que “ser preto era feio e derrotado e ser branco era bonito e vitórioso.” Eu nunca havia ouvido sobre Reis e Rainhas pretas na escola. Eu não sabia que o Egito era na África. Eu achava que egípcios eram brancos. E eu como preto achava que não tinha nada a ver com aquilo. Recentemente, em uma das escolas em que trabalho, uma professora, preta, decorou a sala inteira com imagens enormes de rodas de Griot  e dois varais imensos com mais de quarenta rainhas e reis pretos, faraós, líderes... sem contar super heróis e heroínas negras espalhados pelos corredores da escola. Eu como professor já fiquei emocionado com o trabalho, fico imaginando o impacto que surtiu nos vários alunos e alunas pretas que ela tem. Senti que foi muito positivo. Mas o triste mesmo é constatar que tal lei é aplicada por uma minoria de professores em suas respectivas redes de ensino público. Não tenho dados, mas acredito ser uma minoria. 




Numa troca de idéia, você disse que está estudando sobre Afrocentricidade/Pan-Africanismo. O Pan-Africanismo, falando vulgarmente, é acreditar no "nós por nós". Não aceitar dinheiro do estado ou qualquer dinheiro vinculado a brancos. Como praticar esta filosofia e fazê-la dar certo num pais onde o que impera é o capitalismo onde dependemos muito do estado para muitas coisas.

R: Chegamos no "pulo do gato". E o pulo do gato só posso te passar inbox rsrsrs... veja, Afrocentricidade é ainda um assunto de certo modo novo aqui no Brasil. As organizações brasileiras mais proeminentes que trilham tal caminho ideológico são a Campanha "Reaja ou Será Morto, Reaja ou será Morta", que atua principalmente na Bahia, e a UCPA (União dos Coletivos Pan-Africanistas) que atua com maior efetividade em São Paulo. Do pouco que posso lhe falar, por motivos de estratégia e segurança, é que os Movimentos Negros no Brasil são diversificados e com pautas amplas, e que não há consenso entre eles. Não dá pra vincular afrocentricidade com marxismo; não dá pra vincular afrocentricidade com agenda LGBTT - são movimentos diferentes e com propósitos diferentes. Acontecem infindáveis debates online sobre quem está mais ou menos certo, e no final das contas o que realmente interessa são as ações a favor do povo preto. Os afrocentrados estão atuando e trabalhando pesado. Existem pessoas que gostam de algumas idéias pan-africanistas (e inclusive vertentes dentro do Pan-Africanismo, a Afrocentricidade é uma delas, que é uma vertente Nacionalista Preta) e tentam vinculá-las com a esquerda (Pan-Africanistas de Manchester ou socialistas) e tentam citar líderes negros históricos que tiveram algum contato com a esquerda para tentar legitimar tal ponto de vista, assim como existem pessoas que tentam questionar a sexualidade dos mesmos líderes pretos para inserí-los dentro da agenda LGBTT e por aí vai. Sem contar acusações absurdas de que afrocentrados são de direita, conservadores, machistas, homofóbicos, etc. Eu sou apenas um estudante com um ponto de vista pessoal, e o meu ponto de vista é afrocentrado. Respeito todos os grupos que lutam contra o racismo, mas na hora do arrebento, acredito que minhas opiniões, visões de mundo, minha ótica, quanto mais centrada nas várias Áfricas estiver, melhor. Pra entender o "nóis por nóis", tenha em mente os Quilombos. Mentalidade Quilombista é separatista e autônoma. Mentalidade de senzala é integracionista e procura solução nos recursos (roubados) daquele a subalterniza e massacra, ou seja, os brancos.

A palavra que mais ouvimos entre o povo preto do rap e militante é: Empoderamento. Porem esta palavra vem perdendo o sentido, pois o que eu mais vejo, pessoas usando esta palavra no sentido estético.Pra você mano, o que é um preto empoderado?

R: Pretos e pretas empoderadas, no meu ponto de vista, são aqueles capazes de enxergarem a realidade ao nosso redor com "lentes africanas", ou seja, com referencial científico e cultural totalmente africano, ou o mais africano possível. Que procuram agir em defesa dos seus e procuram agir para evoluir em todos os sentidos possíveis. Intelectual, social, cultural e espiritualmente. 

Aproveitando o gancho, você acha que a geração "Tombamento" dialoga com o preto periférico..?

R: Eu respeito todos os movimentos pretos que existem. Procuro refrear as críticas a pretos pois entendo que malhar meu próprio povo é contraproducente. Há um documento literário chamado "A Carta de Willie Lynch", comprovadamente falso, mas cuja construção e discurso é totalmente relevante e atual. É um suposto senhor de engenho explicando para outro senhor de engenho como manter os pretos sob controle nas senzalas. Uma das maiores estratégias é promover dissidências, divisões, desentendimentos e agressões entre eles. Que se matem ou que se mantenham domados. Um dos maiores aprendizados que obtive com os meus é resolver problemas internos em comunidade e respeito, reverência e assistência dos mais velhos e das mais velhas. A estética preta recentemente tem atraído a todos - os cabelos crespos, as roupas, as danças, os símbolos africanos - está tudo "em alta". Mas eu não sei até quando. Se por um lado todo esse movimento cultural, estético e artístico é positivo por promover a autoestima das pessoas pretas - na época da minha infância pretos e pretas eram feios e ponto final - por outro lado acredito que vale a pena todos estes jovens se informarem bastante sobre o que significa toda simbologia africana que carregam e se a postura que eles praticam está em consonância com nossa ancestralidade. 

O papo mais latente que vem sendo debatido em muitos grupos de rap, não é de hoje, já vem de uma cota. É o Embranquecimento do rap. Nos Estados Unidos por incrível que pareça, ainda não conseguiram pois o preto do gueto norte americano dificilmente consome rappers brancos, é uma questão ideológica. Provavelmente por conta do que fizeram com jazz, blues e o rock. No Brasil ta bem diferente, os principais artistas de rap em destaque são brancos. A que se deve isto e como combater o embranquecimento do rap brasileiro..?

R: A história está ai. O Rap é comprovadamente preto. Nasceu de nossa alma e criatividade frente a situações adversas como criminalidade e a miséria. Lá do toast jamaicano, do spoken word, dos negro spirituals, do funk de James Brown... num momento de luz ancestral Kool Herc  foi tocado e começou sua magia, juntamente com Afrika Bambaattaa, DJ Grandmaster Flash... Rap nasceu preto mas admito que brancos participaram dele desde seus primeiros passos. Mas... quem eram estes brancos? Eram brancos conscientes da origem da cultura, que respeitavam, que entendiam. Ajudaram? Sim! Eu os respeito. No entanto, é interessante ver no Brasil que os MC's brancos em proeminência não aprenderam muito com a Blondie, com o Beastie Boys, com o Rick Rubin, o grupo 3rd Bass... e ficam com uma certa "birra" desta verdade e reproduzem de maneira cansada e preguiçosa o falacioso discurso da “Democracia Racial” e humanista do "somos  todos humanos" e do "rap não tem cor". Nos estados unidos não houve promoção do genocídio higienista por miscigenação. Por manterem um ódio mais latente um do outro enquanto grupo racial, brancos por lá até hoje tem uma percepção meio bizarra de brancos “bancarem-se pretos” demais no Rap. Já por aqui a história é diferente. “Somos todos humanos”. Somos todos humanos como? Lembram que quando as primeiras leis dessas terras européias foram promulgadas determinando direito e humanidade (vide Revolução Francesa, ou os primeiros documentos constituicionais brasileiros ou norte americanos) nós pretos estávamos nas Senzalas sendo tratados como bicho? O pessoal esquece que as proposições "humanistas" já nascem errada. Somos todos humanos desde que humanos sejam brancos. Pretos humanos? Não. Quer prova? Comoção seletiva. Pros grandes meios de comunicação trezentas vidas africanas não tem o peso de uma vida européia ou eurodescendente. Ignorar tais verdades demonstra enorme insensibilidade e racismo reproduzido de modo automático e programado. Rappers brancos brasileiros minimamente deveriam admitir que o rap é SIM preto e que eles tem o DEVER de respeitar nossa cultura e procurar fazer justiça e validar e viabilizar mais pretos em posição de destaque em nossa cultura. Sem esquecer, logicamente, que já estamos correndo nesse sentido por conta própria e não precisamos da esmola de ninguém, a questão é que o país segue no curso histórico de vira-latismo cultural: o de valorizar os de pele clara e desprezar os de pele escura. Ideologia de embranquecimento e higienismo. 
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De uns anos pra cá, tem aumentado significativamente os ataques a pessoas e terreiros de umbanda e candomblé. O que me assusta que isto tem invadido o rap.  Mano de onde vem esta onda conservadora no rap..? E qual a importância de pessoas do rap se posicionarem diante destes fatos..?

Verdades incômodas precisam ser ditas meu irmão, e infelizmente tal fenômeno ocorre principalmente pelo avanço de igrejas evangélicas Brasil afora. Em menor ou maior proporção, de modo implícito ou explícito, nas escolas dominicais ensinam que religiões de matriz africana são obras de feitiçaria e bruxaria, sendo estas duas últimas palavras trabalhadas sempre com sentido negativo, sórdido, "pecaminoso", sujo... Ou seja, a academia européia desde sempre analisa a cultura africana de modo pejorativo. Criaram termos racistas como "religiões animistas" ou até mesmo "pré-história", "primitivismo" ou "tribalismo" para referirem-se aos milenares povos e nações africanas.  Poucos atentam-se ao fato, oculto em nossas escolas, de que a Cultura Africana é um sistema científico e espiritual ao mesmo tempo - não existe "religião" - uma rápida observação na cultura Kemética ("Kemet" ou "Kmt" significa "Terra dos Pretos", posteriormente rebatizada pelos gregos como "Egito", significando "terra antiga". Mdu Ntr é o idioma Kemético original, também rebatizado pelos gregos como Hieroglifos) indica que as decisões políticas, médicas, científicas e rituais eram interligadas. Historiadores pretos, dos quais nunca ouvimos falar, como George G. M. James, explicam de modo revelador como o legado africano foi roubado e deturpado pelos gregos, que passaram a clamar para si a criação da medicina, por exemplo. Ela já existia há milênios antes do grego Hipócrates. Uma das primeiras médicas da qual se tem registro é a Dra. Merit Ptah, preta, Kemética, que viveu em 2.700 A.C. enquanto que Hipócrates, considerado o "pai da medicina" pelo mundo ocidental inteiro (uma grande mentira), viveu em 470 A.C. Para não me estender muito, o historiador senegalês Dr. Cheikh Anta Diop envergonhou toda a academia européia que ostentava por muito tempo falsas teses históricas e racistas de que egípcios migraram da Ásia para a África ao PROVAR que na verdade eram todos AFRICANOS, ou seja, pretos, nas primeiras dinastias. E digo mais - em sua monumental obra "A UNIDADE CULTURAL DA AFRICA NEGRA" ele consegue estabelecer vínculos culturais e linguísticos que comprovam a ligação direta que o sistema científico e espiritual Kemético tem com a Cultura Yorubá e Bantu, das quais derivam nossos Candomblés de Nação. Sem contar o fato da primeira noção de MONOTEÍSMO do mundo também ser africana - vide dinastia do Faraó Akhenáton e seu culto do Único Deus Áton, que anteriormente nos sistemas politeístas era chamado de Amen-Rá (olha de onde deriva o "Amém" dos cristãos). Ou seja - as três religiões abraâmicas (judaismo, islamismo e cristianismo) também derivam, de modo deturpado, do sistema científico e espiritual africano/kemético. Até desenrolarmos tanta informação entre os nossos vai muito tempo... sem contar convencer a sociedade racista brasileira de tais verdades incômodas. Praticamente impossível e desnecessário. Marcus Garvey e Cheikh Anta Diop deveriam compor com prioridade os currículos escolares. Portanto, a atual onda conservadora no rap é resultado de um processo cíclico que hora diminui e hora aumenta, de mentiras inventadas pelos europeus para desarticularem o levante negro. Não acredito em mentiras de direita ou de esquerda. Acredito em mentiras cristãs, judaicas, islâmicas, brancas e européias, todas nocivas pro povo preto. Quando se coloca Raça Primeiro, articula-se uma organização eficiente na construção da autodeterminação do povo preto enquanto nação. E o Hip Hop, por ser também cultura preta, é também um instrumento legítimo de informação e disseminação das verdades necessárias para nossa libertação enquanto povo. Vozes pretas do rap, conscientes, são mais que bem-vindas. E concluindo - infelizmente eu só vejo os ataques aos terreiros aumentando; vão tacar mais e mais pedras e queimar mais e mais terreiros. Os ataques são de fora pra dentro - tiros, pedras, incêndios, mentiras, difamações e demonizações, e também de dentro pra fora - muitos "brancos de axé" conservadores, dentro dos terreiros, com idéias de "bandido bom é bandido morto" (entenda bandido como preto), brancos estes às vezes querendo processar pretos por racismo, brancos estes trabalhando na descaracterização do culto tradicional, etc.  Não são todos. Somos atacados em todas as frentes. O genocídio do povo preto segue pela miscigenação, pelas chacinas policiais, pela negação às oportunidades de emprego, pela negligência intencional dos governantes, pela deturpação da cultura africana, pela cooptação de militantes pretos para pautas brancas e inúteis para nós... a velha tática da conscientização, infelizmente, funciona como um balde de água contra um incêndio em pleno curso.

Pra terminar, onde você se vê daqui 10 anos?


Com saúde, com meus filhos, com minha esposa, com mais algumas graduações, provavelmente em Pedagogia, História, Sociologia ou até Direito,  participando de alguma organização a favor do nosso povo, feliz, lindo e elegante... E sempre ouvindo (e eventualmente fazendo) um bom RAP! rsrs e que Oxalá nos ouça! Quero agradecer a você leitor que milagrosamente chegou até o final desse livro rsrsrs, e a você Anderson, agradeço novamente pela oportunidade e parabenizo por manter o Noticiário Periférico, essa ferramenta de difusão de nossa linda e elegante cultura preta que é o Hip Hop. E se a ancestralidade assim permitir, em 2018 estará na rua meu primeiro disco solo, "FRUTO RESISTENTE"! Axé!

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